A morte brutal e bárbara
da jovem Lucía Pérez na Argentina é um daqueles casos de assassinatos de
mulheres que, ao mesmo tempo, causam comoção e uma série de questionamentos.
Por que as mulheres
continuam sendo mortas pelo simples fato da sua condição de gênero? Será que
realmente somos frágeis dentro deste tecido social e precisamos nos cuidar para
que os homens, programados biologicamente para serem violentos e sem m controle
sobre os seus instintos sexuais, e por isso, não nos mate. Ou será que este é
mais um resquício da velha dominação patriarcal, sexista e misógina?
Bom antes de responder a
estes questionamentos, cabe realizar alguns enquadramentos conceituais. O
feminicídio é entendido como homicídio de mulheres pela simples condição de
gênero. Este tipo de assassinato foi tipificado no Brasil pela Lei n0
13.104/2015 que estabelece o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio.
É o assassinato da mulher por razões da condição do sexo feminino.
Dentro deste instrumento
jurídico, este tipo de homicídio envolve violência doméstica/familiar e o
menosprezo/discriminação contra a condição de ser mulher. Mas cabe pontuar aqui
que o feminicídio não é algo isolado e motivado por situações específicas.
Ele faz parte de um
continuum que engloba um processo continuado de agressões de ordem psicológica
e física contra as mulheres motivado pela discriminação, opressão e toda tipo
de desigualdade. O feminicídio, pela própria característica do evento, é a
parte visível de um largo processo em curso de um sistema patriarcal, violento
e misógino.
Mas vivemos em pleno
século XXI e ainda estamos falando em sistema patriarcal? Será mesmo que a
dominação das mulheres pelos homens ainda continua intacta? Ou será mesmo que
os homens são programados biologicamente para serem violentos e por esta razão,
eles praticam este tipo de assassinato?
Para responder a estes e
a aos questionamentos anteriores, precisamos entender que a maneira estas
relações de poder entre os gêneros estão circulando na sociedade e por isso
mesmo, elas extrapolam os muros da nossa casa.
Apesar dos principais
vitimizadores de mulheres estarem próximos das mulheres (parceiros,
ex-parceiros, familiares ou outras pessoas do círculo familiar), faz-se
necessário atentar para o fato destas dinâmicas de poder terem movimento livre
entre espaço público e privado.
Aliado a este aspecto, não podemos ficar
apegados a determinismos de ordem biológica que estabelecem condições fixas,
imutáveis e programadas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Não estou
aqui querendo desconsiderar o nosso aspecto biológico enquanto seres vivos. Mas
trazer um entendimento de que somos seres que se constroem dentro deste aparato
biológico.
Assim, estas relações de
poder circulantes nos espaços públicos e privados estabelecem que brigas de
casa devem ser resolvidas em casa. E na prática a violência, assim como as
relações de poder, é circulante. Não podemos ficar presos apenas a análise da
dominação dos homens pelas mulheres.
Não que isto não seja
importante pois, eles trazem elementos muito importantes para análise do
contexto de violência. Mas cabe entender que, além de cada homem e cada mulher
ter uma experiência específica sobre condição de gênero, estamos imersos em um
caldo cultural, social e econômico extremamente violento que aniquila,
desconsidera e desvaloriza o outro em sua singularidade. São estas relações
violentas que circulam entre espaço privado e espaço público.
E assim, dentro deste
contexto, percebemos que as mulheres e outros grupos sociais são alvos fáceis
para desta violência estrutural. Com isso, não podemos culpar indivíduos ou
grupos. Aliás, quando pretendemos realizar uma análise de cunho culpabilizador,
entramos uma seara muito simplificadora e superficial da situação.
Mas o que na prática
acontece é que esta violência estrutural cria um terreno propício para que esta
violência de gênero se faça presente com pequenas variações nas diferentes
sociedades e culturas.
Além disso, o feminicídio
nos conta uma realidade ainda invisível de violência doméstica que, por suas características
e particularidades, precisa de uma atenção e tratamento qualificado. Por que
será que muitas mulheres mortas pelos parceiros/ex-parceiros/familiares têm
registros desta violência na polícia e não é feito?
Bom mais uma vez não
quero apontar o dedo e culpar a polícia ou outras instituições. Mas demonstra
como esta violência espraiada de forma macro e estruturalmente traz
consequências para o funcionamento de instituições como a polícia.
A existência de gargalos
como a insuficiência de serviços ou mesmo despreparo técnico de profissionais
da área demonstra como a violência estrutural atinge frontalmente tanto as
instituições públicas assim como grupos “mais sensíveis a este contexto” a
exemplo das mulheres.
Então, a vida de cada
pessoa e sua singularidade, seja de um homem ou de uma mulher, somente serão
levadas a sério quando esta violência em nível macro for tratada(preferia outro
termo).Aliás, cuidada fica melhor. E neste aspecto, pequenas ou grandes ações
são bem-vindas.
Sejam manifestações como
as ocorridas na Argentina ou pequenas ações em casa para uma educação de gênero
mais igualitária. Todas são válidas.
E por falar em educação
de gênero, podemos perceber que esta violência se faz presente quando
percebemos movimentos que praticamente demonizam e/ou tentam impedir este tipo
de implantação educativa em escolas ou em casas. Esta é só uma amostra grátis
do tipo de violência que estou discorrendo aqui no texto.
É sobre isso que a morte
de Lucía Pérez tem a nos contar: uma realidade mundial em que a singularidade e
o outro não são respeitados e isto acontece, principalmente, digamos, se este
outro desviar um pouquinho daquilo que é posto como certo.
Este foi o meu recorte
sobre a situação. Mas é preciso muito, muito mais para que não tenhamos nenhuma
Lúcia Pérez a menos e nenhum agressor a mais.
Grande Abraço!
Karine David Andrade
Santos
Psicóloga CRP-19/2460
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